Lula defende reforma da ONU para acenar ao ''Sul Global'', mas premissa é falha

Lula defende reforma da ONU para acenar ao ''Sul Global'', mas premissa é falha

Um dos assuntos mais destacados pelo presidente Lula nos discursos em Nova York ao longo da semana foi a reforma de organismos multilaterais. Mas o tema dificilmente sairá da retórica. Além de ser uma proposta pouco viável, mesmo se aprovada não mudaria a sorte dos países em desenvolvimento.

Na abertura da Reunião Ministerial do G20, nesta quarta-feira (25), Lula disse que os desafios globais não são solucionados “porque trocamos o multilateralismo por ações unilaterais ou arranjos excludentes.”

O presidente criticou a falta de representatividade das organizações internacionais e propôs a realização de uma conferência para revisar o estatuto e a composição da ONU.

Uma reforma da ONU precisaria da aprovação de dois terços dos 193 países membros da ONU e da ratificação de nove membros Conselho de Segurança. Os obstáculos para sua implementação e o silêncio de lideranças globais explicam por que a proposta foi tachada de irrealista.

Lula também criticou o “caráter fortemente regressivo da arquitetura financeira internacional”, que leva países em desenvolvimento a enfrentar “custos desproporcionais na obtenção de financiamento” em relação aos países ricos.

A defesa não é nova. No início do mandato, Lula disse que o endividamento externo, “que vitimou o Brasil no passado e hoje assola a Argentina” é a causa da desigualdade crescente no mundo “e requer do FMI um tratamento que considere as consequências sociais das políticas de ajuste”.

Tanto o Banco Mundial, como o FMI, entidades autônomas, mas ligadas à ONU, foram criados como consequência da Conferência de Bretton Woods, de 1944, realizada para que os 44 países aliados, vencedores da guerra, discutissem uma reconstrução da ordem financeira global depois do conflito.

Enquanto o FMI tem o objetivo de resolver crises e trazer estabilidade financeira, o Banco Mundial foca no desenvolvimento estrutural dos países.

No caso do FMI, o poder do voto de cada representante depende da sua participação no fundo, não segue o princípio democrático de “um país, um voto”. Os EUA, portanto, têm o maior poder de voto, com participação de 17,43%, o Japão aparece em segundo lugar, com 6,47% e o Brasil fica na 10ª posição, com 2,32%.

Uma das principais críticas feitas é que o sistema de cotização reforça a hegemonia e os interesses dos países do G7, que têm as maiores cotas. Os financiamentos são feitos com a cobrança de juros e estão condicionados a medidas de ajuste e reformas consideradas imprescindíveis pelo FMI.

No caso do Banco Mundial, críticos dizem que falta transparência na alocação de recursos, e que o banco exige contrapartidas aos empréstimos que seguem a cartilha reformista do FMI.

Joseph Stiglitz, ganhador do prêmio Nobel de Economia de 2001 e economista-chefe do Banco Mundial de 1997 a 2000, observou no livro “Globalisation and its Discontents” que o FMI já exigiu que países emergentes permitissem fluxos de capital irrestritos, adotassem reformas, regimes de austeridade fiscal e defendessem ideais neoliberais para atender aos interesses dos maiores cotistas do fundo, como EUA.

Mas o autor pondera que hoje há um cuidado maior sobre as contrapartidas impostas aos devedores.

Francis Fukuyama, o consagrado autor do livro “O fim da história”, também já afirmou que programas de austeridade exigidos como contrapartidas de empréstimos deveriam ter tido um cuidado com preservação de funções públicas essenciais, como justiça, segurança e de critérios sociais, que não foram respeitados como resultado de um neoliberalismo extremo.

Mesmo sabendo que o FMI não vai subitamente perdoar a dívida de países como a Argentina, Lula não critica o fundo por acreditar em uma mudança concreta, mas para se posicionar como uma liderança dos países do chamado “Sul Global”, que representa as nações em desenvolvimento.

Ao atacar o fundo, o presidente encampa o discurso de países emergentes e do pensamento de esquerda, que alegam que o neoliberalismo e as instituições multilaterais atendem aos interesses das nações mais ricas, em detrimento dos países de baixa renda.

Mas a tese de Lula e de outros críticos tem um problema de premissa ao pressupor que as instituições multilaterais têm a responsabilidade de resolver todos os problemas de um país.

Como defende Andrew Moravcsik, especialista em instituições multilaterais, União Europeia e direitos humanos, no artigo “Is there a ‘Democratic Deficit’ in World Politics?”, as instituições multilaterais têm papel limitado em um mundo em que os países já têm inúmeras complexidades internas.

Isso não elimina a importância dessas entidades. Tomando o exemplo do FMI, o fundo teve falhas, mas também teve uma função prática de conter crises desde os anos 70.

Porém, mudanças estruturais dependem dos próprios países e da sua disposição em adotar políticas adequadas para avançar. As instituições multilaterais são imperfeitas e não vão, sozinhas, salvar um país, ainda que tenham cumprido um papel importante como ferramentas de medida anticíclicas.

Quando o presidente Lula diz que a reforma de organismos multilaterais poderia resolver alguns dos problemas mais graves da atualidade, como conflitos e crises econômicas, ele faz uma atribuição exagerada da responsabilidade dessas instituições.

Não é o FMI que vai resolver a pobreza e os problemas crônicos de países em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, as instituições multilaterais não vão deixar de se nortear pelos interesses dos seus principais financiadores para “salvar o mundo emergente”.

Tudo é uma questão de ajuste de expectativas. Lula faz o seu papel de insuflar o discurso do Sul Global e da esquerda ao tecer suas críticas. Mas isso não vai levar a uma reforma estrutural dessas instituições e muito menos à uma solução miraculosa para os complexos problemas dos países emergentes.