Jesse, Shurastey e a tragédia anunciada

Acidente trágico do brasileiro e seu cachorro dá luz à urgência de discutir sobre segurança veicular.

Jesse, Shurastey e a tragédia anunciada

Você, como todos nós, certamente se comoveu com a fatalidade envolvendo Jesse Kozechen e seu companheiro de viagem Shurastey na última semana de maio nos Estados Unidos. As imagens do Fusca 78 acidentado são chocantes; alguns comentários nas redes sociais sobre o acidente, idem. E a discussão sobre a (falta de) segurança do Fusca em particular e de carros antigos no geral dividiu opiniões.

Evidente que um carro de mais de 30 anos de fabricação (idade que a Fiva, Federação Internacional de Carros Antigos, estabelece para classificar a antiguidade de um veículo) não tem os mesmos modernos recursos de segurança.

Mas carros como o Fusca não são artefatos mortíferos, desde que o motorista respeite as limitações da máquina, redobre a atenção ao volante, não apele para gambiarras permanentes para manter o veículo rodando e, mais importante, não se descuide da constante manutenção que o idoso exige. Em poucas palavras, carro antigo não é inseguro; carro malconservado, de qualquer idade, é.

Não parece ter sido o caso do Fusca de Jesse: o carro circulou durante meses em estado precário e, reformado, transformou-se em uma colcha de retalhos costurados com pontos de solda, como se constata por meio da conta shurastey, com 1,5 milhão de seguidores, no Instagram. Nada garante que o destino dos viajantes seria menos trágico caso o Fusca estivesse íntegro, com manutenção em dia e com as características de projeto preservadas.

O que se pode afirmar é que ao volante de um carro original em perfeitas condições de uso, o motorista tem maior controle sobre o veículo – novo ou antigo. Com isso, a viagem se torna menos estressante. Menos arriscada, portanto. É o que os técnicos chamam de segurança passiva. O que ocorreu com Jesse e seu companheiro foi uma tragédia – uma tragédia anunciada, como se verá.

Jesse Koz, caso você não saiba, é o rapaz de 29 anos que em 2017 saiu de Balneário Camboriú, Santa Catarina, onde vivia, dirigindo um Fusca 1978 comprado por R$ 7 mil, por alguns países sul-americanos. Com isso, reuniu ingredientes para uma receita de sucesso nas redes sociais: espírito de liberdade, ruptura com as convenções, boa dose de humildade, carisma, um carro festejado no mundo inteiro e um simpático cão.

Ganhou milhares de seguidores, tornou-se celebridade, angariou doações para financiar a viagem, tomou gosto pela coisa e em maio de 2019 decidiu ir para o Alasca. Sua jornada terminou a 2.400 quilômetros da fronteira do Canadá, a partir de onde alcançaria seu objetivo: ele não sobreviveu ao choque contra um Ford Escape na manhã de 23 de maio, nos Estados Unidos.

Os ocupantes do SUV, uma senhora de 62 anos de idade e uma criança de dois, sofreram ferimentos leves. Shurastey, o golden retriever de 6 anos, viajava solto no interior do Fusca, e morreu junto com o tutor na colisão.

Ter chegado ileso a uma oficina no México, onde foi feita a transformação do Fusca, foi mero golpe de sorte: a corrosão tinha consumido boa parte da carroceria e do assoalho – que só não se partiu em dois porque as mantas de revestimento interno impediram. Mais: a barra de direção estava prestes a se soltar. Qualquer inspeção veicular superficial teria condenado o fusquinha ao depósito de sucata.

Jesse já havia se acidentado por conta da barra semanas antes na América Central, mas escapou ileso do choque contra um portão. Levava muitos objetos soltos no interior do carro – seu cão, inclusive, sem ter ideia do risco que isso representa.

Por ação da cinética, a força que age sobre o movimento dos corpos, um cão de 30 quilos (peso médio de um golden retriever adulto) passa a pesar 28 vezes mais em caso de desaceleração brusca ou colisão a 100 km/h. O cálculo das entidades de medicina de tráfego é proporcional à velocidade do veículo. E Jesse prosseguiu viagem até o México (onde o Vocho foi fabricado durante 36 anos até 2003) para reformar o carro.

Do Fusca 78 que saiu do Brasil, os mecânicos só aproveitaram o chassi, a tampa do motor e o para-lama traseiro. A carroceria original foi substituída por outra, do Fusca mexicano, as portas vieram do carro alemão vendido nos Estados Unidos e o motor 1.300 foi trocado pelo 1.600 mexicano. A suspensão traseira também foi improvisada: saiu a original, de semieixo oscilante, e foram instaladas mangas de eixo (nunca adotadas no Fusca brasileiro, mas presentes no Volks alemão desde os anos 1960).

Os tambores dianteiros saíram para a entrada de discos. Pneus de maior diâmetro e a modificação na suspensão elevaram o vão-livre dos 152 mm originais para 350 mm. Só as chapas do assoalho, produzidas para o mercado externo por um fornecedor do Brasil, eram novas; os demais componentes eram de segunda mão, incluindo a carroceria coberta por grossa camada de massa que teve de ser removida à base de martelo e talhadeira.

O próprio Jesse fixou a fita do cinto de segurança com um parafuso na junção da coluna com o teto, sem ter noção de que a gambiarra só serviria para abalar ainda mais a já precária estrutura do Fusca que dirigia. Em 18 de janeiro seguiu viagem rumo aos Estados Unidos.

“Criou-se um Frankstein”, diz o presidente do Fusca Clube do Brasil, Alexandre Almeida. “As características originais do carro foram completamente alteradas e isso pode trazer graves consequências.” Um dos pontos que chamou a atenção foi a alteração do centro de gravidade: além do vão-livre ampliado para quase 200 mm do padrão original, o Fusca 78 transportava no teto uma barraca de 35 centímetros de altura quando fechada, e 45 quilos de peso.

O problema talvez nem seja o peso, mas a altura da bagagem”, observa Almeida. “Isso pode desequilibrar o carro em algumas situações, como uma rajada de vento lateral ou uma mudança brusca de direção.”

A dinâmica do acidente, de acordo com relato de testemunhas, embasa a teoria: Jesse tentou se desviar de um carro parado à frente, esterçou o volante para a esquerda, invadiu a pista contrária e quando tentou voltar, perdeu o controle do veículo – o Fusca tombou e foi colhido pelo Escape, um SUV de 1,6 tonelada e 30 cm maior que o Ecosport. Jogar o carro para a esquerda em emergências, é tendência observada na maioria dos motoristas, embora, no caso do acidente fatal, o acostamento à direita estivesse livre.

Veículo colidiu com um Ford Escape, SUV de 1,6 tonelada e 30 cm maior do que o Ecosport — Foto: Divulgação

Provavelmente toda a manobra ocorreu com as rodas travadas, pois em situações de pânico, a regra comumente seguida é manter o pé direito afundado no pedal de freio. Em carros com tração traseira como o Fusca, frear quando se perde o controle não é a melhor solução – o ideal é esterçar o volante do lado contrário de onde a dianteira aponta e acelerar progressivamente para retomar a trajetória.

O acidente ocorreu na Rota 199, uma estrada secundária de mão dupla que nasce na Califórnia e atravessa parte do estado de Oregon. Também é conhecida como Rodovia Redwood, ou madeira avermelhada, menção à cor das sequoias que podem ser avistadas em trechos da estrada.

Percorri algumas centenas de quilômetros da Redwood nos anos 1990 e posso afirmar que é uma via segura e bem-sinalizada, mas que exige muita atenção do motorista: é comum se surpreender com o veículo à frente reduzindo a velocidade para que se contemple a paisagem ou parando para fazer conversões. Colisões traseiras são o tipo de acidente mais comum nos Estados Unidos, segundo relatório da NHTSA, a principal entidade de segurança de trânsito naquele país. Representam 29% das ocorrências e em 87% dos casos foram causadas por distração ao volante, de acordo com o relatório.

Rota 199, ou Redwood Highway, é uma estrada que liga a Califórnia ao Oregon — Foto: Getty Images

Nesta época do ano, auge da primavera no Hemisfério Norte, a US 199 é muito frequentada por turistas atraídos pela beleza das cores na paisagem – e pelas compras no Oregon, um dos poucos estados americanos que não cobram impostos no varejo.

A velocidade máxima permitida no trecho do acidente, informa Katherine Wentzel, porta-voz do Departamento de Trânsito de Oregon, é de 70 km/h. Como referência, a 60 km/h, um Fusca 1.300 ano 78 com freios a tambor e só com o peso do motorista, percorre 20,5 metros até a imobilização, segundo testes da época; com discos, a distância é encurtada em até 30%, calcula Alexandre Almeida.

Como em toda estrada secundária de mão dupla nos Estados Unidos, e em muitos países europeus, o motorista não usa o acostamento para fazer conversões: permanece na faixa de rolamento com a seta indicando a manobra e quem vem atrás é obrigado a parar. Foi a origem do acidente: o carro à frente do Fusca esperava trânsito contrário livre para entrar à esquerda e Jesse não conseguiu parar a tempo. Supostamente, a idosa ao volante do Escape não teve tempo de reagir.

Com a autoridade de quem dirige antigos no dia a dia há 23 anos, Maurício Marx, colecionador e comerciante de carros clássicos, aponta um dos erros mais comuns na condução de um idoso: a falta de noção nas frenagens. “Já vi gente experiente se apavorando quando as rodas travam e o carro se desgoverna”.

Um dos erros mais comuns na condução de um idoso é a falta de noção nas frenagens — Foto: Auto Esporte

Evitar esse tipo de situação, diz ele, requer cuidados: estar atento para antever as situações de risco, antecipar-se a elas, pisar suavemente no pedal de freio, reduzir uma ou duas marchas para contar com o auxílio do freio-motor e aliviar o pé caso as rodas comecem a travar.

Ele admite que já se valeu de gambiarras para continuar viagem. “Um pedaço de arame e um alicate podem fazer milagres em um carro de mecânica simples – o problema é quando as gambiarras se tornam permanentes.” Em abril, Marx rodou 2.500 quilômetros entre França e Alemanha com o Veio Zuza, apelido que deu ao Porsche 356 de 1951, e agora está na Itália para participar com o mesmo carro do mais famoso raid de carros clássicos, a Migle Miglia.

“Dá para viajar tranquilamente com qualquer carro antigo, desde que não se abuse da sorte”, garante. E cita o exemplo de Hermán e Candelaria Zap, o casal argentino que durante 22 anos percorreu 300 mil quilômetros por 100 países a bordo de um Graham-Paige 1928. O casal (e os quatro filhos que nasceram durante a aventura) concluiu a viagem em março “Até as rodas de madeira do carro eram originais”, conta Marx que fez a manutenção do raro modelo durante a passagem dos argentinos pelo Brasil.

As fotos do acidente mostram um Fusca retorcido com o motor expelido para fora do berço e dão dimensão do tamanho do impacto do Escape contra o teto, um dos principais componentes da estrutura do Volkswagen: o formato curvo do teto apoiado pelas colunas é um dos elementos que assegura a rigidez do conjunto.

“O Fusca é um projeto de Ferdinand Porsche dos anos 1930 e é um carro bem estruturado, apesar de não contar com soluções básicas de segurança ativa, como a carroceria com deformação programada ou coluna de direção e pedais retráteis”, opina o engenheiro Alexander Gromow, entusiasta do modelo.

Ele observa que o teto do carro não conta com barras internas de reforço na extensão da curvatura, mas a rigidez é assegurada pelo vinco que acompanha a calha. E lembra que em 2003 o Fusca superou o Golf de segunda geração em teste de impacto offset a 40° contra barreira deformável 64 km/h, como era norma na época. Também se saiu melhor no teste de impacto lateral.

Na avaliação, organizada pelo Ömtc, o automóvel clube austríaco, contudo, ficou claro que os ocupantes sofreriam graves lesões em um choque. O Fusca testado pertencia à terceira geração do modelo, produzida até 1978 na Europa, e já incorporava algumas soluções de segurança. “No Brasil, o Fusca não evoluiu a esse ponto. O carro fabricado aqui era o mesmo que foi tirado de linha em 1963 na Alemanha”, conta Gromow.

No total foram produzidos 3,3 milhões de Fusca no Brasil, dos quais 1.939.351 continuam em circulação — Foto: Acervo Autoesporte

No total foram produzidos 3,3 milhões de Fusca no Brasil, dos quais 1.939.351 continuam em circulação, segundo dados do Denatran. Boa parte dessa frota, contudo, circula em estado precário ou com adaptações bizarras, consequência do encarecimento de peças originais diante da repentina valorização dos carros nacionais dos anos 1970 no mercado de colecionadores/investidores. Apenas 10 mil portam a placa preta, distinção para carros com mais de 30 anos que atinjam pelo menos 80 pontos em originalidade.

Houve nova onda de comoção durante o velório de Jesse Koz na segunda-feira 6 de junho em Balneário Camboriú, onde a dupla vivia (as cinzas do golden ainda não tinham sido liberadas para retornar ao Brasil). A prefeitura local promete inaugurar um mural com as imagens do jovem com seu Fusca e seu cão (que emprestará o nome para um parque destinado a cachorros), além de outras homenagens.

Mas os viajantes promovidos a ídolos merecem mais: um ciclo de palestras ministradas periodicamente por especialistas em segurança de trânsito em escolas e universidades de todo o país, por exemplo, seria uma boa iniciativa para eternizar a memória de um jovem idealista morto de forma brutal. E para conscientizar os jovens que, porventura, queiram seguir os mesmos passos de Jesse e Shurastey.

 

 

Com informações Globo.