Debate mostra que agenda feminina ainda é vista como política de papo furado

Candidatos à esquerda e à direita desconhecem conceitos básicos do debate de gênero.

Debate mostra que agenda feminina ainda é vista como política de papo furado
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Apesar da busca pelo voto de mulheres, os candidatos à Presidência mostraram desconhecer conceitos básicos como misoginia e política de paridade de gênero e trataram as 109 milhões de brasileiras como um nicho a ser conquistado, não como o maior grupo populacional do Brasil.

A questão feminina ganhou centralidade graças ao ataque misógino do presidente Jair Bolsonaro (PL) à jornalista Vera Magalhães, da TV Cultura. Misógino porque ofende com elementos de gênero: "Acho que você dorme pensando em mim" e "tem uma paixão por mim" são ofensas que dialogam com o fato de a jornalista ser mulher.

É esse caráter sexualizador que diferencia essas ofensas de outros ataques de Bolsonaro, como nos momentos em que chamou Lula de "ex-presidiário", o que, concorde-se ou não, pode ser considerado do jogo político.

Os outros dois principais candidatos homens, Ciro Gomes (PDT) e Lula (PT), não registraram o caráter misógino da ofensa de Bolsonaro. O primeiro usou o destempero do presidente como exemplo de polarização, sem se solidarizar com a jornalista, e o segundo ignorou completamente o que tinha acabado de acontecer.

Foram as duas mulheres, Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (UB), que condenaram imediatamente Bolsonaro. Os homens, certamente orientados pelas campanhas, passaram a fazê-lo nos blocos seguintes.

Bolsonaro, que tem nas mulheres o principal gargalo de rejeição, dirigiu a Ciro uma pergunta sobre a agenda feminina. A ideia era usá-la como escada para listar o que seriam as conquistas do seu governo. As redes sociais chiaram, mas pelo motivo errado. A principal reclamação era o fato de o presidente ter dirigido a pergunta a outro candidato homem.

Na política tudo é intenção, e a de Bolsonaro não era ampliar o debate feminista, mas evitar mais um confronto direto com as candidatas.

No entanto, ter dois homens discutindo políticas de gênero em um debate de rede nacional é exatamente o que devemos almejar. As políticas públicas de interesse feminino não podem ser debatidas apenas entre mulheres, como se fosse problema só delas.

O erro na pergunta está no que Bolsonaro afirma. Nenhum dos projetos sancionados durante o governo é de autoria do Executivo.

Segundo checagem do UOL, o presidente também vetou seis propostas que se referiam especificamente a esse grupo demográfico, incluindo a distribuição gratuita de absorventes para mulheres em situação de vulnerabilidade. O governo Bolsonaro também é responsável por sucessivos cortes de orçamento em programas de combate à violência contra a mulher.

Ciro, que, em entrevista recente ao jornal Valor Econômico, chamou políticas para mulheres, negros e índios de "política do papo furado", disse que falta a Bolsonaro "delicadeza" para tratar de questões femininas. E não listou nem uma proposta sequer de seu plano de governo que seja direcionada especificamente às mulheres.

O ex-presidente Lula, ao ser questionado sobre a composição de seu eventual ministério, saiu-se com uma falácia bastante comum. A de que não olha para gênero e de que escolheria pessoas por sua competência. Um argumento muito utilizado por… Bolsonaro.

Acontece que as dinâmicas de gênero não acontecem isoladas da sociedade. Estudos mostram que o que falta às mulheres não é capacidade, mas poder.

O discurso da igualdade de gênero na política como mérito individual não existe num país de 83 milhões de eleitoras em que há 15% de deputadas e 19% de senadoras e onde nunca uma mulher foi presidente das Casas Legislativas do país.

Lula citou exemplos como o do México, reconhecido pela paridade de gênero na política, e disse que é "perfeitamente possível ter maioria" de mulheres. Mas a igualdade mexicana não caiu do céu. Ela é fruto de anos de articulação dentro do Congresso, unindo a bancada feminina a aliados homens, o que permitiu a aprovação de leis que estabelecem essa paridade.

Tebet, cuja campanha tem como mote central a chapa 100% feminina, trouxe no discurso elementos que desagradaram parte das mulheres.

A menção ao "coração de mãe" leva uma noção antiquada e sexista do posicionamento da mulher na sociedade. Infelizmente, parte do eleitorado ainda é atraída para candidaturas femininas justamente por esse "sexismo benevolente", o que faz com que seja difícil para as políticas abandonarem esse tipo de discurso.

Para fechar com chave de ouro o desconhecimento total sobre a agenda feminina, o candidato do Novo, Luiz Felipe d'Avila, chamou a lei Maria da Penha, uma das melhores do mundo no combate à violência doméstica, de "Lei Maria da Paz".

O saldo do debate mostra que, no Brasil, as mulheres interessam enquanto fatia do eleitorado —depois de eleitos os representantes, ainda são parte do "papo furado".

 

 

Com informações Folha de São Paulo.