Caso Marielle: submetralhadora usada para matar vereadora é arma incomum no mundo do crime

Modelo MP5, de calibre 9mm, produzido pela fabricante alemã Heckler & Koch, também foi encontrado em apartamento na Baixada Fluminense

Caso Marielle: submetralhadora usada para matar vereadora é arma incomum no mundo do crime

No fim da tarde de 8 de maio de 2018, policiais civis invadiram o condomínio Safira 2, em Itaguaí, na Baixada Fluminense, após receberem uma denúncia anônima: o depósito do armeiro da milícia que dominava a região funcionava dentro do conjunto habitacional do programa Minha Casa Minha Vida. Os agentes fizeram uma varredura no apartamento apontado no relato e encontraram, dentro de armários e embaixo de sofás, oito armas. Uma delas era incomum no mercado ilegal: a submetralhadora modelo MP5, de calibre 9mm, produzida pela fabricante alemã Heckler & Koch — mesmo modelo da arma, de acordo com a polícia, usada para matar a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, em março de 2018.

Entre as mais de 40 mil armas apreendidas pelas polícias do Rio entre janeiro de 2017 e agosto de 2022, só quatro são submetralhadoras MP5, segundo um levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz. A arma que estava no apartamento em Itaguaí foi a única do tipo encontrada em poder de milicianos. As demais estavam com traficantes de favelas da capital. No entanto, se a MP5 é raramente apreendida entre criminosos, ela é encontrada com mais facilidade em quartéis e delegacias do estado: atualmente, as forças de segurança do Rio têm cerca de 200 exemplares — e, nos últimos 20 anos, cinco submetralhadoras do tipo sumiram de paióis públicos no Rio.

A Polícia Federal investiga se a arma usada para matar Marielle foi uma das desviadas. Em sua delação premiada, o ex-PM Élcio de Queiroz afirmou ter ouvido de seu comparsa, o também ex-PM Ronnie Lessa, que a MP5 que portava na noite do crime pertenceu à Polícia Militar do Rio e teria sido extraviada durante “um incêndio no paiol do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope)”.

PM nega desvio do Bope

A versão é contestada pela corporação, que alega que todas as 24 submetralhadoras HK MP5 que adquiriu nos últimos 42 anos continuam em seus paióis. De acordo com a PM, 12 delas foram compradas em 1982, passaram a fazer parte do acervo do Bope sete anos depois e são usadas até hoje em escoltas de autoridades e em casos de sequestro. Já as outras 12 foram doadas pela Marinha à PM só em dezembro de 2018, após o assassinato de Marielle Franco. Atualmente, as submetralhadoras fazem parte dos acervos do Bope e da Ajudância Geral da PM.

A Polícia Civil, por outro lado, tem registros de extravios de submetralhadoras HK MP5. Um recadastramento feito pela corporação em seu arsenal em 2011 constatou o sumiço de quatro armas do tipo. Essas armas não desapareceram de dentro de delegacias: elas estavam acauteladas com agentes que morreram enquanto ainda trabalhavam na corporação, acabaram vendidas ou repassadas por seus herdeiros e se perderam.

O sumiço dessas submetralhadoras mostra a falta de controle do armamento da corporação: em 2015, os extravios não estavam entre os comunicados à CPI instaurada pela Assembleia Legislativa (Alerj) para apurar desvio de armas e munição das forças de segurança no Rio. E eles só passaram a ser alvo de sindicâncias internas após a Delegacia de Homicídios (DH) constatar, durante a investigação do caso Marielle, que as armas não estavam mais no acervo da corporação.

— Durante a CPI, constatamos que não há uma busca ativa, pela Polícia Civil, de armas acauteladas com policiais. E havia muitas nessa situação. O controle era bastante inconsistente — aponta o deputado Carlos Minc (PSB), que presidiu a CPI.

Hoje, a Polícia Civil ainda tem 55 submetralhadoras MP5 em seu acervo. Ronnie Lessa teve contato com armas desse tipo nas duas polícias: ele trabalhou tanto no Bope no início da década de 1990 quanto em delegacias especializadas que usavam o armamento na década seguinte, como a Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE).

Mais de cem na PF

A Polícia Federal também registrou o extravio de uma MP5 de seu acervo. Em 2016, uma arma sumiu de dentro do Serviço Marítimo da corporação, que não informa se o caso foi investigado. A submetralhadora é a arma padrão da corporação até hoje, e a Superintendência do Rio conta com mais de uma centena de exemplares. O Exército tem 125 armas desse modelo em seu arsenal e afirma que não tem registros de desvios.

Em 2019, ano seguinte ao do assassinato de Marielle Franco, o presidente Jair Bolsonaro autorizou que caçadores, atiradores esportivos e colecionadores (os CACs) pudessem comprar armas desse tipo — antes de uso restrito de forças de segurança. Nos quatro anos seguintes, 27 unidades foram adquiridas por civis. A categoria perdeu o acesso a essas armas a partir do início do governo Lula.

— No Brasil, a MP5 praticamente inexiste no mercado civil e, pela escassez de unidades em circulação, também é muito incomum no mercado criminal. Por isso, a hipóteses mais provável para a arma usada na execução contra Marielle sempre foi a de arma desviada de arsenal estatal — afirma Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz e especialista em controle de armas.

Antes do caso Marielle, o Brasil já tinha um histórico de submetralhadoras MP5 desviadas de forças de segurança e usadas em crimes. Em março de 2015, uma arma do tipo, de propriedade da Polícia Federal, foi apreendida num estacionamento no centro de São Paulo usado como depósito por Carlos Wellington Marques de Jesus, apontado como um dos maiores ladrões de banco do país. Já na década de 1990, duas MP5 furtadas da Superintendência da PF no Pará acabaram nas mãos de outra quadrilha de assalto a bancos que atuava em Fortaleza.

 

 

Mais Goiás.